quarta-feira, 27 de julho de 2016

O fim da Rádio Cidade e o descaso com o patrimônio cultural



Março de 2014. Depois de uma campanha ostensiva nas redes sociais, encabeçada por vários notáveis da música brasileira, a agonia de oito anos finalmente tinha um fim. A empresa que arrendava a frequência 102,9 do FM fluminense faliu, abrindo espaço para o ressurgimento da Rádio Cidade, desta vez com slogan "O que é bom é pra sempre". Acreditamos.



Dois anos e quatro meses depois, porém, o compromisso em manter vivo esse patrimônio cultural brasileiro apagou, e a única estação carioca dedicada ao rock será, mais uma vez, desfeita. Por motivos ocultos, o Sistema Jornal do Brasil de Rádio, outrora um dos mais pujantes do país, decidiu voltar a arrendar a frequência para terceiros. Desta vez, à Rádio Mania, de perfil popular (aproveitando a lacuna deixada pelo encerramento da Nativa FM pelos Diários Associados).

Muitos ouvintes acabaram levando a discussão a uma direção equivocada: a de que uma rádio de funk e pagode, majoritariamente, não seria melhor do que uma de rock'n'roll. A questão não é essa. O segundo fim da Cidade é problemático em várias questões: má-gestão empresarial, fiscalização frouxa dos meios de radiodifusão, falta de valorização do patrimônio cultural.

Lembremo-nos de que emissoras prestam um serviço público, através de outorgas concedidas pelo Ministério das Comunicações. Em tese, elas precisam oferecer uma série de contrapartidas, como uma programação de qualidade. Terceirizar a prestação desse serviço, em tese, não é permitido. Ou opera o concessionário, ou devolve a concessão para que outro o faça. No esquema atual, os titulares das outorgas podem receber algumas centenas de milhares de reais por mês sem fazer absolutamente nada, sem gerar empregos e sem cumprir seu dever.

Os proprietários do Sistema JB de Rádio não só pecam ao desrespeitar isso, que seria o dever de todas as estações, mas também ao brincar com um verdadeiro patrimônio da cultura brasileira. A Cidade inventou o rádio FM como conhecemos. Em sua fundação, um grupo de radialistas (inclusive Fernando Mansur, que foi meu professor na UFRJ) trouxe ao Brasil novas linguagens e a inserção do locutor em substituição à execução de "músicas de elevador" ininterrupta.



Como consequência, a Cidade tornou-se líder no segmento jovem. Assim como a Rádio Nacional, a TV Tupi e tantas outras emissoras são vistas hoje com o respeito justo aos seus papeis históricos, o mesmo deveria se dar com a rádio rock do Rio. No entanto, nesse quesito, não se pode esperar tampouco alguma ação do Estado, que mal cuida de seu próprio patromônio, haja visto o descaso com as emissoras da EBC: a Nacional, espremida no prédio da TV Brasil, e as rádios MEC AM e FM, ainda afastadas de suas verdadeiras sedes na Praça da República, há anos em processo de restauração.

Outra questão que remete à má-gestão é o não aproveitamento da fidelidade de um público. O Rio de Janeiro tem a região metropolitana onde se ouve rádio por mais tempo diariamente. Além disso, sabemos que os ouvintes da Cidade são apaixonados e não trocam de estação à toa. Alguns apocalípticos chegam a pregar o fim da popularidade do rock, uma vez que as paradas brasileiras têm sido dominadas por sertanejo jovem, funk e pop/r&b internacional. Entretanto, remando contra maré, a Rádio Cidade vinha mantendo bons índices no segmento jovem, acima da Transamérica e só perdendo para a Mix, rádios que, inclusive, popularizaram seus perfis na tentativa de incorporar a nova ascenção do funk.

Claro que entristece saber que a estética musical entrou em decadência. A afinação e a harmonia, que deveriam ser princípios básicos em qualquer estilo, passaram a ser meros detalhes nas composições de muitos "artistas" hipermidiáticos e populares. Na lista das 50 faixas mais executadas no Spotify na última semana, a única que tende ao rock é "Photograph", do Ed Sheeran. Isso até poderia alimentar os argumentos dos apocalípticos, mas na mesma plataforma, pelo menos dez artistas e bandas de rock figuram entre as 50 mais populares, incluindo nomes como Beatles, Charlie Brown Jr., Legião e Linkin Park.

Existe, sim, demanda por rock'n'roll! Ou como se explica a coexistência de duas rádios dedicadas ao estilo em São Paulo (Kiss e 89 FM)? No Rio, existem - agora contando com a Cidade - três web rádios roqueiras: Maldita FM (legado da fase rock da Fluminense FM, atual BandNews Fluminense) e Planet Rock (que hoje tem até a Monikinha, Monika Venerabile, ex-Cidade, em seu elenco). As duas últimas, curiosamente, são de Niterói. Por que não montar um projeto conjunto de rádio no dial? Um problema comum em rádios virtuais é que algumas se tornam exatamente aquilo que a Cidade substituiu nos anos 70: meras reprodutoras de música, sem locução e sem programas.

No Rio de Janeiro, a Roquette Pinto FM, emissora pública do estado, tem algumas faixas e programas dedicadas ao rock, ainda que em horários restritos. Mas, como quase toda a comunicação pública, não tem a devida divulgação, e sua audiência, como consequência, não passa do traço. Outras rádios públicas não têm interesse no estilo, sabe-se-lá-por-quê, e não temos rádios universitárias. Na britânica BBC, por exemplo, são produzidas apresentações até com bandas estrangeiras.

Falando em shows em estúdio, assim que a Cidade voltou, em 2014, foi retransmitida uma edição emblemática do "Invasão da Cidade". Trata-se da participação do Legião Urbana, em 1992. Lembro que escutei o programa inteiro, em pleno horário de trabalho, e mal continha meu fascínio perante as palavras fortes, mas em tom doce, de Renato Russo intercaladas com apresentações singelas dos hits da banda.

Outro ponto que causava admiração era o fato de, a todo momento, os locutores lembrarem que estavam sendo ouvidos por dez milhões de pessoas através da então Rede Cidade, que tinha afiliadas em vários estados. "Será que um dia a Cidade poderá voltar a ter tamanha relevância?", pensei. Houve uma expansão rumo à Região dos Lagos, que funcionaria somente durante o verão, mas que se tornou permanente. Além disso, novos programas foram criados, e a atuação na internet, com "sub estações" segmentadas e disponibilidade de todo o conteúdo via podcast, era primorosa. As vinhetas carismáticas e o time de locutores de primeira estavam acima da concorrência.

Onde será que foram parar aqueles dez milhões de ouvintes de 1992? Talvez se a administração da Rádio Cidade tivesse feito essa pergunta, eu não precisaria escrever este post.
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